Holocausto e Atualidade: uma discussão sobre relações e transposições

Mais do que imprecisões históricas óbvias ao tentar transpor um evento para um contexto diferente, charges como a publicada no Plural somente municiam o antissemitismo e esvaziam o conteúdo histórico e político dos eventos passados em prol de um choque sensacionalista

Instituições e pesquisadores sérios têm produzido diversos estudos sobre as muitas complexidades do conflito no Oriente Médio. Apesar disso, absurdos têm sido ditos e publicados sobre o tema. Porém, discutir a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas não é, em si, o objetivo desse artigo. Uma charge do cartunista Tiago Recchia publicada no Plural motivou o Museu do Holocausto de Curitiba, mais do que repudiar a comparação irresponsável e vulgar, a discutir sobre a transposição do Holocausto para o presente.

Desde 2020, o Museu mantém nesse veículo uma coluna quinzenal não à toa chamada “Holocausto e atualidade”. Nesses quase três anos, foram mais de 50 artigos discutindo as mais variadas temáticas relacionando esse genocídio aos dias de hoje. Holocausto e nazismo são eventos históricos localizados em determinados lugar e tempo. E, como sabemos, a história não se repete. “O” nazismo e “O” Holocausto, como qualquer acontecimento do passado, não podem, literalmente, voltar a ocorrer no presente. Mas então, o que o Holocausto pode ter a dizer sobre a atualidade?

Transposições mecânicas

Em tempos de tensão política, a ânsia de transposições mecânicas parece, para alguns, insaciável. Já vimos isso, por exemplo, durante a pandemia e após os atos golpistas de 8 de janeiro. Muitas pessoas correram para localizar nazistas e campos de concentração em todo lugar. Em várias ocasiões, o Museu do Holocausto se pronunciou, não apenas porque se configuram distorções históricas, mas por não contribuírem para que os processos em torno do Holocausto forneçam ferramentas que nos ajudem a entender esses acontecimentos presentes. Nessas situações, nazismo e referências ao Holocausto servem somente como um insulto para algo do qual não gostamos.

O mesmo ocorre no atual acirramento de tensões no Oriente Médio. Não foram poucos os que não hesitaram em atribuir ao lado com o qual não se identificam a pecha de nazistas e, àquele ao qual são simpáticos, o papel dos judeus vítimas do genocídio dos anos 1930-40. Assim, não é difícil encontrar afirmações cheias de certezas e virtudes morais acusando Israel de perpetrar um Holocausto em Gaza ou, do outro lado, de que a causa palestina é só uma máscara para um nazismo eterno.

Lamentavelmente, fomos surpreendidos no próprio Plural com uma charge associando a Faixa de Gaza ao complexo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Uma analogia vil e inadmissível do ponto de vista ético, político e jornalístico. Mais do que imprecisões históricas óbvias ao tentar transpor um evento para um contexto diferente, charges como esta não elucidam em nada a trágica situação na Faixa de Gaza; somente municiam o antissemitismo e esvaziam o conteúdo histórico e político dos eventos passados em prol de um choque sensacionalista.

Não há relações entre Holocausto e a atualidade que sejam, a priori, interditadas. A liberdade acadêmica e de expressão pressupõe a possibilidade de testar até mesmo as hipóteses mais improváveis. Portanto, o que repudiamos não é uma tentativa de se valer de conceitos elaborados dos estudos do nazismo e da Shoá para entender o que ocorre hoje em Israel e Palestina (embora a maior parte dessas tentativas não resulte em análises de qualidade), mas sim seu uso vulgarizado para gerar engajamento virtual e não deixar dúvidas de que está “do lado certo da história”.

CARLOS REISS

Coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.

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