É apropriado um jogo de vídeo game sobre o Holocausto?

Não existem a priori quaisquer críticas quanto ao suporte ou à interface com a qual um projeto educativo vai se ancorar. O que precisamos nos ater é a respeito da qualidade dos produtos que utilizam essas novas plataformas

Tela de “The Light in the Darkness”. Imagem: Reprodução 

A eterna discussão sobre como educar sobre o Holocausto ganhou novos capítulos em 2023. The Light in the Darkness, um jogo de computador com pretensões educativas (e gratuito) criado pelo programador britânico Luc Bernard (o mesmo que criou um Museu do Holocausto na plataforma Fortnite), alimentou o debate sobre o desafio de alcançar um público jovem – chamado, de maneira genérica, de “novas gerações”. Assim como outros experimentos (como projetos que envolvem stories em redes sociais e até vídeos em novas plataformas ou inspirados por sua estética), a iniciativa de um jogo levantou dúvidas e críticas por parte de pesquisadores e educadores.

O Museu do Holocausto de Curitiba tem sido questionado, principalmente por descendentes de sobreviventes, sobre possíveis parâmetros éticos e a eficácia pedagógica de um jogo sobre esse genocídio, considerado ainda um tabu. O objetivo desse texto não é proporcionar um veredito irrefutável sobre o game em si (que tive a oportunidade de jogar e que será aqui apreciado), mas levantar questões que nos ajudam a fundamentar uma opinião alicerçada sobre The Light in the Darkness e de outros jogos que existem (como o recém-lançado The Darkest Files, que mereceria outra resenha, e o próprio Fortnite) e que porventura (e provavelmente) surgirão.

Antes de uma análise sobre esse game de aventura histórica, apresento dois tópicos relevantes para direcionar a discussão. O primeiro, esmiuçado em outro artigo desta coluna publicado em abril de 2022, atenta sobre a necessidade de compreender, ressignificar e decodificar tanto os contextos quanto as necessidades que cada tema possui em se conectar com novas realidades. Significa, em outras palavras, que a tecnologia deve sim ser usada a nosso favor.

Esse é o argumento primordial utilizado pelo criador do jogo, Luc Bernard, numa entrevista à imprensa: “No espaço digital, temos que educar o maior número possível de pessoas. Precisamos, basicamente, que tudo se torne parte da cultura e da memória pop, como foi no auge da ‘Lista de Schindler’. Precisamos de vídeo games, museus digitais, mais sobreviventes no TikTok. Precisamos atacar em todas as frentes, agora”, afirmou.

Há muitas controvérsias, principalmente no anseio por transformar “tudo” em cultura pop. No entanto, o uso do espaço digital e o “ataque em todas as frentes” materializam uma busca importante pela atenção das “novas gerações” e o desenvolvimento arrebatador da tecnologia. O potencial educativo e transformador do Holocausto nos proporciona criar em todas essas “frentes”, ajudando a construir uma memória coletiva universal, plural e útil para o presente e para o futuro.

Em resumo, não existem a priori quaisquer críticas quanto ao suporte ou à interface com a qual um projeto educativo vai se ancorar. Essas ferramentas estão a serviço da educação e suas inovações podem (e devem) ser utilizadas sem parcimônia. O que precisamos nos ater é a respeito da qualidade dos produtos que utilizam essas novas plataformas digitais. São bons produtos ou são inoportunos? Partem de premissas equivocadas ou cumprem seu propósito?

Por isso, ponderar sobre The Light in the Darkness pressupõe analisar sua qualidade como produto, e não condenar a existência de um game sobre o Holocausto. Esse debate existiu em outras épocas a respeito da Shoá como ficção no cinema, na arte, nos quadrinhos e nas redes sociais. Décadas após as más interpretações acerca de reflexões de Adorno e de Marcuse, ainda caminhamos em círculos e precisamos elucidar que qualquer plataforma, se bem utilizada, pode gerar excelentes resultados e contribuir na construção dessa memória universal. Se o cinema tornou-se um desses suportes unânimes, o vídeo game também pode se consolidar como uma ferramenta educativa, se for tratado com carinho.

Jogos são o principal meio de entretenimento para mais da metade da geração Y. Christian Huberts, representante da renomada Foundation for Digital Games Culture, defendeu numa entrevista que os games podem ser boas maneiras de aprender e possibilitar a experiência não apenas de espaços e paisagens históricas, mas de como funcionam os sistemas políticos. Então, por que não vincular a lembrança do Holocausto aos jogos? Conceitualmente, repito: não há problema nisso.

Interatividade

Apresento como segundo tópico o potencial problema elementar em games com a temática do Holocausto: sua possível interatividade na tomada de decisões. Num artigo acadêmico publicado no livro “Reflexões para o ensino do Holocausto: memória, educação cidadã e direitos humanos”, organizado pela professora Sandra Mara de Oliveira Vicente e pela pesquisadora Julia Amaral Amato Moreira, discuto os prejuízos que os role playing games (RPGs) e os “jogos de simulação de vida” exercem na busca pelo exercício empático em iniciativas educativas sobre o Holocausto. Apesar do potencial, a gamificação em cenários de colaboração e de simulação de personagens é importante em outras áreas do conhecimento, mas uma ferramenta pedagogicamente temerária para a transmissão desse evento histórico.

Aqui, o obstáculo está na incapacidade que esses jogos têm de fortalecer a empatia, apesar de se vangloriarem do oposto. Ao possibilitar com que jovens, separados geográfica e temporalmente do Holocausto, decidam sobre dilemas enfrentados por pessoas que lá viveram, cria-se não uma ponte, mas uma barreira para uma verdadeira conexão entre ambos. Parte fundamental da problematização desses jogos na construção da empatia com as vítimas é a criação de juízos de valor (de acordo com a concepção weberiana) e de suposições hipotéticas como “eu teria feito diferente”, “essa decisão errada fez com que ele não sobrevivesse” ou até “ao contrário dele, eu teria sobrevivido”.

Não é o caso, no entanto, de The Light in the Darkness. “Eu não poderia fazer um jogo onde você ganha no final”, disse Luc Bernard em outra entrevista. O criador do jogo retirou o elemento mais problemático de um game sobre o Holocausto: a possibilidade do jogador tomar decisões que questionem escolhas das vítimas reais e que alterem o rumo das histórias dos personagens. O jogador não é encorajado a questionar eticamente essas decisões (como, por exemplo, no dilema enfrentado pelos personagens sobre “esconder-se” ou “entregar-se”). Não há controle sobre eles – e não importa o caminho que o jogador tome: o destino no complexo de extermínio de Auschwitz-Birkenau é, no jogo, inevitável.

Evidente que essa perspectiva é também problemática, já que questiona a capacidade da pessoa vitimada em tomar decisões que alterem a sua própria trajetória (e, eventualmente, salvem sua vida e de seus familiares). Retirar o “poder de decisão” e direcioná-la ao fado inevitável contribui para fortalecer a imagem do judeu como vítima passiva, que caminhou como uma ovelha ao matadouro e que teria na morte seu destino impreterível. Por outro lado, ao retirar a essência da interatividade e simular uma “falta de controle” para os jogadores, o game intencionalmente evita os juízos de valor e explora a impotência que essas vítimas tiveram que suportar. Em ambos os casos, temos problemas graves. É uma faca de dois gumes.

CARLOS REISS

Coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.

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