MINHA EXPERIÊNCIA AO ASSISTIR “A VERDADEIRA DOR”
O filme nos pega pela mão para ensinar que a dor do outro é única. Buscá-la para se legitimar é como encontrar uma casa e não poder entrar. É só vê-la por fora.
Por Carlos Reiss
Depois de muitos anos lidando diariamente com a memória e a educação sobre o Holocausto, não é fácil encontrar um filme que cumpra as expectativas que coloco no cinema. Uma arte que, mais do que entreter, tem a capacidade de nos fazer experimentar sensações e sentimentos; dizer o que as fontes históricas não conseguem dizer. Despertar algo que esteja oculto, encoberto pelas nossas dores ou nossos medos. Seja em forma de roteiro, de fotografia, de atuação ou do conjunto de técnicas que estão à serviço de uma boa história. Comigo, ao lidar com o subgênero do Holocausto, raramente acontece. As razões são óbvias. Até evito assistir, tamanha a frustração com a maioria das produções. Os filmes são quase sempre, em curtas palavras, mais do mesmo. Cheios de clichês. Esquecíveis.
A Verdadeira Dor me atingiu como poucas produções audiovisuais me tocaram. Desde o cativante Jojo Rabbit, provavelmente não sentia esse turbilhão de emoções e reflexões, uma necessidade de pensar, de conversar e de escrever. Criado na cabeça do diretor, roteirista e ator Jesse Eisenberg (como eu, um neto de sobreviventes do Holocausto), o filme despretensioso chega num patamar de profundidade onde outros similares que tentaram, não conseguiram – caso de Tesouro, também de 2024, protagonizado por Stephen Fry. E tantos outros.
Não sou um crítico de cinema e não pretendo analisar o filme sob essa ótica profissional. Trabalho com construção de memória. Mergulharei no desafio de colocar em palavras os motivos que fizeram me apaixonar por esse filme aparentemente tão simples, com cenas tão banais, mas ao mesmo tempo tão profundo e bem executado. (Quase) sem spoilers.
Mais do que parece
Lendo a sinopse ou assistindo as primeiras cenas, é fácil construir uma imagem equivocada de que o filme se resumiria numa junção de três características comuns e desgastadas do cinema de Hollywood: um filme sobre o Holocausto; um roteiro pautado num road movie e o que a crítica Isabela Boscov chamou de “pares desencontrados”, pessoas com personalidades distintas que estão unidas por algum sentimento mútuo. De cara, o filme parece meio fácil, quase pré-moldado, formatado em função de motes desgastados do cinema. Mas não é verdade. Seria então um filme que se segura apenas por meio de temas como a herança cultural, o luto e os relacionamentos familiares? Também não. Esse filme é muito mais do que isso.
A grande surpresa é que Holocausto, Polônia, memória e luto são apenas o pano de fundo para um filme que usa e abusa dos subtextos para falar sobre as dores que o ser humano carrega e alimenta. O ator principal, apesar de considerado coadjuvante pelo Oscar, é Kieran Culkin, que interpreta Benji. Sua premiada atuação é convincente demais. Um jovem que amava a avó e que carrega uma energia caótica e quase anárquica, materializadas por um carisma fora de série. Ele é intenso, extrovertido, sociável, ilumina os ambientes onde está. Ao mesmo tempo, é impulsivo, instável e carrega uma dor e um sofrimento que nos mostram, o tempo inteiro, o quão frágil ele é.
Jesse Eisenberg, que interpreta o primo David, é o oposto. Ansioso, reservado, quase neurótico, quer controlar todos os sentimentos da experiência de uma viagem a Polônia para buscar suas raízes. David e Benji são muito diferentes, quase inconciliáveis, mas que se invejam e se amam. Tudo construído de forma tão orgânica que parece um livro de Philip Roth ou um roteiro de Woody Allen. Das dores e da relação entre David e Benji, surge a essência e os contrapostos do filme.
De quem é a verdadeira dor?
A verdadeira dor não tem um rosto e uma forma definida. Todas elas são legítimas. Cada dor vivida é complexa e única. Por que, então, falamos em verdadeira dor? Existem as dores óbvias e as menos óbvias. No filme, somos apresentados, de forma sensata e carinhosa, às dores de muitos personagens que compartilham o grupo turístico onde estão David e Benji. A maioria parece viver aquela experiência na Polônia para validar o seu próprio passado. Uma tentativa de viver a dor do outro para que suas próprias vidas e suas identidades sejam legitimadas. Um automartírio. Como se a memória estivesse à disposição de todos num monumento, num cemitério judaico ou num campo de extermínio nazista. Vejo isso todos os dias no meu trabalho.
No entanto, vivemos dores verdadeiras o tempo inteiro, e elas são nossas. Não é a dor do outro que nos define. O filme nos pega pela mão para ensinar que essa dor do outro é única. Buscá-la para se legitimar emocionalmente é como encontrar uma casa e não poder entrar. É só vê-la por fora.
Ao contrário dos comedidos e discretos, Benji é o ponto fora da curva. Seu espírito livre, atrevido e sua personalidade extrovertida são como um grito de socorro, um pedido de ajuda. Você vê o quão fragilizado e perdido ele está. Ele carrega dores que não faz ideia de como lidar. Por isso, oscila entre momentos de incômodos, constrangimentos e silêncios que revelam um homem vivendo mentalmente no seu limite.
No fim das contas, a obra é muito mais sobre Benji. Não à toa, o filme começa e termina no rosto dele. É ele quem carrega “a verdadeira dor”? Não. Mas a sua verdadeira dor é a única livre de amarras sociais e que nos faz, por muitos momentos, tentar, por nós mesmos, montar o quebra-cabeças de sua mente confusa. O crítico de cinema PH Santos conseguiu descrever, em seu review sobre o filme, a melhor descrição que vi sobre a inquietude de Benji e sobre a tentativa bem-sucedida de Jesse Eisenberg em explorar “a verdadeira dor”.
Ele é um personagem tão sem rumo, e ao mesmo tempo de rumos tão precisos, que prefere ficar no aeroporto observando o ir e vir das pessoas que passam e não ficam. Porque ele mesmo não se encontra em si. Assim como as pessoas não se encontram no aeroporto. Elas apenas passam por ali.
Todos nós conhecemos um Benji. Alguém que a sociedade rotula como “talento desperdiçado”, como um jovem de futuro promissor que se perdeu em seus próprios fantasmas. E que, por outro lado, também invejamos por sua sensibilidade e capacidade de cativar qualquer pessoa. Vemos Benji se sobrecarregando pela bênção e pela maldição de sentir mais pelos outros do que por si mesmo. No entanto, na soma dos fatores, falhamos em compreender que dores que tornam tão instáveis figuras como Benji são também verdadeiras. Precisam ser notadas com carinho e com atenção. Eles pedem ajuda.
A Verdadeira Dor fala sobre saúde mental de uma forma que não estamos acostumados. Principalmente ao mesclar temas como o genocídio, a memória e a identidade. Talvez, aos poucos, após tantas frustrações no cinema, eu esteja entendendo quais os tipos de filmes sobre o Holocausto são capazes de me tocar: aqueles que aparentemente são sobre o Holocausto, mas que, no frigir dos ovos, discutem a natureza humana de forma honesta e universal. De Jojo Rabbit até aqui, foram seis anos. Espero não ter que esperar mais seis para sentir essa faísca que A Verdadeira Dor me proporcionou.
CARLOS REISS
Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba.
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